Oito homens sentados à mesa de um restaurante, vestidos de ternos pretos e gravatas finas, complementados por camisas brancas impecáveis. Pelas suas roupas, esses personagens poderiam ser confundidos com executivos, mas a cena mostra um grupo atípico e suspeito.
Após uma análise poética inesperada de “Like a virgin”, a conversa evolui para o tópico de gorjetas.
"Será que essa cena poderia ser um jogo?"
Foi isso que perguntei para os participantes de uma oficina de narrativas para jogos que ministrei recentemente.
Na cena de abertura de Cães de Aluguel (1992), quando chega a conta de restaurante, Mr. Pink (Steve Buscemi) faz um discurso apaixonado explicando por que ele não dá gorjetas, metralhando seu desprezo pela ideia de que é uma obrigação social. Sua postura provoca reações mistas, com alguns dos outros homens à mesa rindo e outros o confrontando sobre sua atitude. A cena se torna um resumo dos princípios e valores que vão guiar o arco narrativo daqueles personagens, ao mesmo tempo que é facilmente um convite pro espectador tomar uma posição diante dos argumentos de cada um deles. Enquanto isso, quem é supostamente o protagonista (ou um vilão, segundo o próprio Tarantino) está tentando esconder que é um policial infiltrado e por isso precisa performar o que seria a postura de um “bandido casca grossa”.
Ou seja, muita coisa está acontecendo nessa cena, ao mesmo tempo que na superfície parece que pouca coisa está acontecendo.

As cenas de jantares, almoços e até lanchinhos na padoca são um recurso poderoso na construção dramática de personagens porque condensam, em um espaço físico e simbólico, múltiplas camadas de significado e interação de uma forma orgânica. Essas cenas exploram a convivência, os conflitos, e as dinâmicas interpessoais, muitas vezes revelando aspectos muito profundos de uma forma mais inventiva e menos direta.
Esse tipo de construção de cenário é muito comum no cinema e séries de tv como recurso narrativo, mas, apesar de constantemente usarmos marcadores para definir a saúde ou energia dos nossos personagens jogáveis, muitas vezes, para dinâmica do jogo, a refeição se resume a pegar uma peça de frango assado deixada no chão inadvertidamente ou coisa parecida.

Todos esses confrontos ou proximidades são potenciais chamados para interações que envolvem facilmente o jogador porque estão ancoradas em um cenário que ele já convive no dia-a-dia, mesmo que tudo isso aconteça numa desgastaad mesa de madeira na Idade Média ou no refeitório de uma nave espacial.
Como em uma peça teatral, esse tipo de contexto transforma o espaço físico em um ambiente claustrofóbico, onde as emoções não podem ser evitadas, como o conflito inerente a uma boa cena.
Recentemente a série The Bear usou brilhantemente esse tipo de cenário no episódio Fishes, da segunda temporada.

O episódio usa a ceia de Natal da família Berzatto para expor as feridas emocionais dos personagens e as relações de poder dentro da família. O verdadeiro significado de uma cena muitas vezes reside no subtexto — e "Fishes" é um episódio onde os silêncios, os olhares e os gestos dizem tanto quanto os gritos. Cada interação no jantar é carregada de subtexto, revelando camadas de mágoa familiar, pressão e expectativas esmagadoras.
Linda Seger, em Making a Good Script Great, defende que cenas eficazes são aquelas que cumprem múltiplas funções narrativas, como uma ceia de Natal caótica com mais de dois tipos de carnes, drama, risadas e um inesperado acidente de trânsito. Uma cena de refeição é perfeita pra fazer isso de uma forma bem inteligente e econômica, perfeito pro seu estúdio indie não estourar o orçamento porque você achou que você e o Hideo Kojima podem se encontrar na fila da lotérica só porque ele twittou que ele também é indie.
Isso é econômico porque é obviamente estático. Os personagens não estão se movendo muito, a quantidade de assets visuais na cena é menor. Isso também é particularmente desafiador para inserir num jogo, já que um grupo de pessoas sentadas provavelmente recitando diálogos pode não ser o hook que você vai colocar no trailer de lançamento do seu jogo. Pelo cenário que eu descrevi você pode estar se questionando se isso é um elemento realmente aplicável em um jogo e já pode estar querendo se levantar da mesa e ir embora.
No jogo Pentiment os momentos de refeições não são meros momentos de descanso, elas representam as estruturas sociais e econômicas do final da Idade Média, na Alta Baviera. Em cenas com famílias camponesas, a comida escassa e os utensílios modestos reforçam as dificuldades impostas pelas dinâmicas de poder daquela sociedade, que sofre com a imposição de cobrança de tributos e a redução de direitos pela Abadia de Kiersau. Em contraste, os banquetes no mosteiro exibem a riqueza da Igreja, muitas vezes como uma contradição aos seus votos de austeridade.

Também é um momento de vulnerabilidade e intimidade com os personagens que permite o jogador a tentar acessar mais informações para resolver os mistérios do jogo, que é muito fundamentado em investigação. Por isso escolher com quem dividir a mesa e quando é um poderoso elemento estratégico nesse jogo que eu não canso de citar.
Você precisa ter certeza de que está mantendo energia em uma cena assim. Isso começa no roteiro, caso haja diálogos eles devem ser fortes e conter tensão, conflito, subtexto e personalidade. Ao mesmo tempo que integra esse tipo de dinâmica diretamente nos objetivos do jogo, de preferência inserindo jogabilidade e agência do jogador, porque não faz sentido adotar esse recurso pela capacidade em criar conflito se você não está colocando o jogador para resolver ou agravar esse conflito. Os personagens e objetivos do jogo precisam ser totalmente desenvolvidos, para que você possa entender de onde cada um deles vem e como cada um deles vê a conversa.
Além disso, uma cena de refeição comunica com seus elementos visuais: o que os personagens estão comendo, sua posição na mesa e um ambiente que ditam ritmo da cena (se vulneráveis, se cercados, em recuperação, numa demanda de atividades que envolvam respostas rápidas do jogador...)

Estou colaborando no roteiro de Kambulin, um adventure bem afetivo criado por Fabio Beifuss, e usamos uma mesa de um almoço como ferramenta estratégica pra que o jogador resolva um conflito no jogo...
…mas essa é uma história para compartilhar em outro encontro, em uma outra mesa.

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