Cuidado! Seu jogo é inovador DEMAIS! Neofobia e Game Design
- Livia Scienza
- 3 de set.
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de set.
Medo do novo? Conheça o conceito psicológico de neofobia e como ele pode te ajudar (ou atrapalhar)
Olá jovens. Sou eu de novo, Scienza, sua psicóloga de jogos preferida (por favor fale que é verdade, eu sou sensível). Voltei aqui com minha série de pequenas aulas sobre psicologia e antropologia nos jogos. Caso ainda não tenha lido, dá uma olhadinha nas matérias passadas e depois volta aqui!
Hoje eu vou falar sobre um conceito da psicologia um pouco desconhecido e, até onde sei, pouco comentado. Mas antes de falar sobre ele eu queria contar uma historinha curta envolvendo... abelhas.
Abelhas??? Como abelhas se relacionam ao design de jogos? Calma.... Ajeita sua postura e acompanha a narrativa.
Antes de estudar psicologia aplicada aos games, eu trabalhei estudando o comportamento de abelhas da espécie Melipona quadrifasciata. Oxi, não acredita? Publiquei até um artigo internacional muito chique sobre esses estudos, tá?
“Bom, e o que exatamente você fazia?”. Boa pergunta! Eu ficava hoooras em um laboratório ensinando abelhas a diferenciar cores. As abelhas aprendiam que em uma cor elas ganhavam um xarope com açúcar e, em outra cor, não recebiam nada. Depois de um tempo, as abelhas aprendiam a ignorar completamente a cor que não dava nada e voavam lindamente para a cor em que recebiam docinho.
Depois de um tempo, eu fazia um teste. Uma pegadinha do malandro assim, sabe? Lembre que a abelha aprendeu onde tinha docinho e onde não tinha, certo? Vamos supor que ela aprendeu que recebia xarope na cor azul e não recebia na cor amarela.
Ela aprendeu a IGNORAR amarelo e a ACEITAR a cor azul. Eu sempre apresentava as duas cores juntas e trocava elas de posição em algumas tentativas. Depois de um bom tempo pousando no certo e às vezes no errado, a abelha finalmente voava pro azul estando ele do lado direito ou esquerdo.

Mas pensa.... O que aconteceria se nós trocássemos amarelo (sem docinho) por outra cor? Se eu colocasse um preto no lugar do amarelo, junto com o azul, a abelha ia no azul (com docinho).

Afinal, era onde tinha docinho. MAS E SE eu trocasse o azul por outra cor? Vamos supor que a abelha chega voando e vê a cor amarela (ela aprendeu que não tem docinho) e uma cor branca. O que ela faz?

Tic tac tic tac. Bom, ela não iria no amarelo, certo? Ela aprendeu que no amarelo não tem xarope. Será que ela iria no branco? Ela não aprendeu nem a rejeitar o branco nem a associar o branco com docinho. O branco é totalmente NOVO. Ela não aprendeu se no branco ela terá docinho ou não.
Bom, o estudo do artigo ali de cima é mais complexo que isso, mas vou dar spoiler de uma parte da discussão.
Por vezes, as abelhas ficavam sobrevoando o amarelo e branco sem pousar e voltava para a colmeia. Em outras vezes, preferiam pousar onde elas “sabiam” que não receberiam docinho que pousar em uma cor nova que nunca tinham visto antes. A este fenômeno de ignorar completamente o novo (por vezes dando até preferência por algo que já conhece, mas que sabe que não receberá nada) damos o nome de NEOFOBIA!
Além de abelhas, outros organismos apresentam comportamentos semelhantes de neofobia, incluindo.... os seres humanitos. Bom, imagino que você não desenvolva jogos para abelhas, e, por isso, vamos focar nos seres humanitos a partir de agora.
Você consegue imaginar como a neofobia se traduz para o desenvolvimento de aplicativos, softwares e jogos? Vou te falar 4 formas em que a neofobia pode impactar no game design. Tá preparado?
1. Resistência a Mecânicas Inovadoras
Jogadores com alta sensibilidade à novidade podem demonstrar rejeição inicial a jogos que subvertem convenções de gênero (como um FPS com narrativa introspectiva ou um RPG com ausência de combate).
Mecânicas muito inovadoras podem causar estranhamento ou rejeição precoce se não forem introduzidas de forma progressiva ou contextualizada. Game designers podem suavizar esse efeito por meio de tutoriais apresentados gradualmente, metáforas visuais familiares ou referências a gêneros conhecidos.

Se você colocar o jogador diante de mecânicas completamente novas sem explicar como elas funcionam ele pode desistir do seu jogo rapidamente. Comece com as mecânicas mais comuns antes de apresentar as diferentonas.
Use e abuse de tutorias. Pense que seu jogador é como uma abelhinha perdida procurando aquela cor em que ela aprendeu que receberá docinho. Você não precisa ficar no arroz com feijão! Mas dê o docinho e mostre a cor conhecida primeiro antes de ensinar a abelhinha a dar hadouken.
Inovar é necessário e as mecânicas que mais amamos e estamos habituados algum dia foram inovadoras. No entanto, é aquela coisa... Caso a inovação seja MUITO excêntrica, as pessoas podem não compreender a proposta e podem rejeitá-la.
As próprias abelhas do meu estudo precisavam ser gentilmente introduzidas aos nossos aparelhos de teste. Caso simplesmente colocássemos os aparelhos em frente a colmeia elas iriam apenas ignorar ou sequer sairiam da colmeia por medo.
2. Design de Interface e Navegabilidade
Mudanças radicais em HUDs (heads-up displays), esquemas de controle ou fluxos de navegação também podem gerar frustração em usuários com baixa tolerância à novidade, sobretudo se não houver paralelos com experiências anteriores.
A primeira vez de uma pessoa usando um óculos de realidade virtual pode ser bastante frustrante por possuir formas muito diferentes de interação.
Nos jogos, a UI de Persona 5 é conhecida por ser bastante inovadora e artística. Alguns amam a UI do jogo e outros nem tanto.

Adotar princípios de design funcional pode ajudar a equilibrar inovação com familiaridade. A previsibilidade na navegação minimiza o desconforto gerado pela neofobia.
No entanto, equilibrar estética, arte e funcionalidade não é tão simples. Uma UI completamente padrão sem ser estilizada não combina com o universo gamer no geral. Por este motivo, teste, teste novamente e depois teste uma vez mais com jogadores reais.
3. Reação a Estéticas Não Convencionais
Jogos com visuais fora do padrão "dominante" podem provocar resistência estética. A aversão inicial pode ser lida como uma forma de neofobia ainda pouco explorada, mas discutida em estudos sobre cognição visual. Uma vez mais, fugir de estéticas dominantes pode ser até uma forma de resistência. No entanto, realize testes de conceito e tente entender muito bem seu público-alvo.
A estética inovadora pode ser melhor aceita quando acompanhada por contextos narrativos claros ou direcionamento emocional que ajudem a ancorar o jogador.
4. Neofobia e Experiência de Jogador
Jogadores com altos níveis de neofobia podem preferir jogos que ofereçam estruturas previsíveis, gêneros estabelecidos ou padrões repetitivos, mesmo à custa de inovação. Isso pode influenciar retenção, avaliações de jogo e engajamento a longo prazo. Esse tipo de player pode escolher jogos sempre muito parecidos ou de um mesmo gênero.
Identificar o perfil de tolerância à novidade pode ser útil em testes de usabilidade, surveys e personas, principalmente em jogos com propostas experimentais ou de nicho. Para isso, é relevante ter no seu time uma pessoa com expertise em UX RESEARCH.
Conclusão
Caso tenha chegado até aqui, você é um anjo. Toma aqui seu DOCINHO.
Agora você pode chegar em grupos de devs e perguntar se eles sabem como design de jogos se relaciona com abelhas (se eles forem esquisitos igual eu e você, vão minimamente querer saber a resposta).
Goxtou? Lembre-se que não é porque algumas pessoas podem ter dificuldade em aceitar novidades que você não deve INOVAR. Apenas tome muito cuidado ao fazer isso, jovem. Caso queira ajuda, estou oferecendo seviços de consultoria em UX RESEARCH para estúdios independentes e podemos conversar sobre neofobia e vários outros conceitos da psicologia aplicada aos games. Uai, preciso divulgar meu trabalho, né?
Aguarde a próxima matéria porque vem mais por aí! Beijos de luz!
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