Saindo da Caixa: a Psicologia por trás do boom dos games de organização
- Livia Scienza
- há 3 minutos
- 9 min de leitura
Poucas coisas são tão relaxantes quanto tirar coisas de caixas de mudança para colocar os objetos na nova residência...... certo? Calma, isso soa meio errado.
Como é então que um game com essa exata premissa teve um sucesso tão ESTRONDOSO? Qual? Estamos falando do famigerado Unpacking!
No game com visão isométrica, acompanhamos um personagem ao longo de várias mudanças de sua vida. Metafórica e literalmente! A cada conjunto de caixas organizadas nos cômodos de novas residências, podemos observar a personagem crescer, amadurecer e mudar de vida. Isso tudo sem, contudo, desfazer-se de objetos que claramente têm valor sentimental.
A mecânica simples de arrastar objetos de dentro de caixas para posicioná-los em locais estratégicos de cômodos ganhou o coração de milhares de jogadores! O game conta com mais de 30 mil reviews na Steam.
Por ser uma grande fã do jogo, um fenômeno me chamou atenção nesses últimos dois anos (2024 e 2025). Percebi que jogos do gênero "Unpacking" têm crescido consideravelmente. Em buscas pela plataforma Steam e acompanhando devs no Bsky e X, encontrei ao menos 9 jogos lançados entre o final de 2024 e a serem lançados ainda neste ano.
Esses jogos podem não ser todos idênticos, mas... Spoiler: são unidos pela vibe relaxante e por mecânicas de organização, construção e customização.
Mistério? Será que conceitos da Psicologia poderiam nos ajudar a explicar o gosto por games dessa natureza? Bom, eu tenho algumas hipóteses! Gostaria de ouví-las? Bom, tecnicamente, você provavelmente irá ler. Mas você entendeu!
Hipótese 1 - Sem tempo, irmão!
Vivemos em tempos em que o tempo (risos) é um commodity. "Tasks" são para ontem. Prazos. Velocidade. Otimização. PRODUTIVIDADE. Mais em menos tempo.
Só de escrever essas coisas eu fico de cabelo em pé. Mecânicas de limite de tempo em jogo são super válidas. Mas uma coisa é fato: elas geram adrenalina. São mecânicas que ativam mecanismos cerebrais muito específicos relacionados a atenção, alerta e perigo.
Alguns perfis de jogadores amam isso! É como praticar um esporte radical. No entanto, essa não é a premissa de jogos como Unpacking ou jogos cozy no geral.
Nesse tipo de game, é comum que NÃO HAJA LIMITE DE TEMPO. O player pode explorar, apreciar a arte com calma, tomar um chá, fazer carinho no gato, ler e reler os objetivos, errar sem muitas consequências negativas. São pequenas unidades de abraços quentinhos. Mecânicas que são como um cafuné.

Aqui é tudo sobre amenizar o sistema de alerta e perigo. Você está seguro.
Para alguns players neurodivergentes e players que possuem altos níveis de ANSIEDADE generalizada, games cozy são suprassumos do gameplay.
A ausência de prazo para cumprir tarefas e objetivos é apenas um dos possíveis elementos dos chamado cozy games. Vocês podem, inclusive, conferir um post que fiz sobre cozy games no Insta.
Perceba que ali em cima que escrevi ANSIEDADE e não escrevi ansiedade <3 ou ansiedade uwu. Há um motivo para isso que vem aíííí (sério, tá literalmente aí embaixo).
Hipótese 2 - Quem não gosta de Pastel?
Ahhhh pastel quentinho direto da feira...
Mas não tô falando desse pastel. Tô falando de TONS PASTÉIS! Vamos falar de uso de cores?
Em termo antropológicos e culturais, cores são socialmente associadas a certos elementos e tokens. Estas associações podem ser culturalmente reforçadas ou podem perder a força ao longo de centenas de anos. Não estou falando de nada referente à evolução aqui, hein? Essa parte das pesquisas que afirmam que vermelho evoca isso e azul aquilo.... Hmmmm..... As coisas não são tão simples assim. Por isso, falarei das cores aqui como um conceito contextualmente construído.
Você sabia que, em certo período histórico, o rosa era associado ao masculino e o azul ao feminino? Percorremos um longo caminho até... Marmanjos com mais de 30 anos se recusarem a usar qualquer elemento cor de rosa. Até evitarmos o uso das cores e verde e amarelo por elas terem se associado à um certo segmento da população.... No entanto, estamos retomando o uso dessas cores aos poucos.
Muito se discute atualmente se a Psicologia das Cores é uma pseudociência (não confundir com a Teoria das Cores). Não entrarei neste mérito nesta matéria (talvez em alguma futura), mas qualquer psicólogo analista do comportamento afirmaria, de pronto, que as cores possuem significados a nível individual a depender do histórico da pessoa (ou organismo) com cada cor. Isso é verídico até para abelhas, que aprendem a evitar ou preferir certas cores a depender de sua história. Também há uma matéria em que falo sobre isso!

O que quero dizer com tudo isso é que cores são fortes transmissoras de informação. Raramente alguém irá pintar o quarto de uma criança com um tom laranja neon.
Usualmente, quartos de bebês, hospitais pediátricos e consultórios clínicos são pintados com cores de tom pastel. Mais que meramente ser algo aesthetic, tons pastéis estão fortemente associados culturalmente a momentos de paz e tranquilidade. Seriam, ao meu ver, o equivalente a um lo-fi visual (lo-fi são musicas calmas com batidas eletrônicas lentas).

Por outro ângulo, jogos com forte uso de tons pastéis geralmente contam com contrastes mais suaves entre os elementos. Veja bem, bons usos de contrastes são essenciais para uma boa usabilidade da interface e para questões de acessibilidade.
Mas dentro do que é admissível para um bom contraste, tais jogos trabalham em limiares. Afinal, contrastes muito fortes também podem gerar um sentimento de urgência ou de incômodo visual. Incômodo geralmente não é algo que um jogo cozy gera. Pelo contrário. As esolhas de cores, contrastes e brilho são feitas para gerar uma vibe mais zen.
Falando em zen.... Vamos falar de Feng shui? Quero dizer, não exatamente....
Hipótese 3 - Marie Kondo: o Retorno da Jedi? Ou seria Sith?
Organização, organização. Quem não gosta de espaços arrumadinhos? De Feng Shui a Marie Kondo, de diminuir sobrecarga cognitiva a deixar as energias fluírem.
Eu não tô falando do papo elitista de Clean Girl ou de Minimalismo não, viu?! Pode existir organização dentro do maximalismo. Mas vamos falar da sensação de ordem.
Essa sensação de organização é algo subjetivo e abstrato. Muitas pessoas se encontram no que outros chamariam de bagunça. Não, isso não é uma desculpa pra justificar os cabos espalhados na minha mesa de trabalho, tá? Juro.

"Calma aí!! Volta a fita! Quem é essa Marie Kondo?". Você não conhece a Marie?
Ela teve um boom e um tcham (não faço ideia do que isso significa, mas faz sentido na minha cabeça) alguns anos atrás por seus livros e programas sobre organização e minimalismo. Embora o minimalismo possa se referir a uma estética, para ela, trata-se de um estilo de vida e uma filosofia de viver apenas com o necessário e com o que te "traz alegria".

Logo de cara você já pode ficar meio hmmmmm. Viver com o necessário? Viver com o que traz alegria? Isso parece lindo, mas sabemos que há uma parcela da população que luta para sobreviver e não pode se dar ao luxo de escolher apenas objetos e elementos que "tragam alegria". Uma população que não podem apenas se desfazer de coisas porque elas "não trazem felicidade". Enfim... A tal da Marie também tinha um programa sobre organização pessoal.
Parece ser um tipo de senso comum (e algo que gera muitos views) que organização é algo interessante... Mas o que estudos mostram?
O lance aqui é sobre alguns elementos como a categorização, o que chamamos de "sobrecarga cognitiva" e a ludificação.
Há um certo prazer em "colocar as coisas em seu devido lugar". Em Unpacking, certos objetos não deveriam ser postos em determinados ambientes. Uma panela no banheiro? Escova de dente na cozinha? Nope.
Você possui liberdade de posicionamento, mas com certas limitações e regras. Você pode até achar que não gosta de regras, mas.... Nós ficamos completamente sem chão e perdidos em um ambiente completamente desprovido de lógica e ordem.

O ordenamento e a categorização são processos que usamos para facilitar nossas vidas e nos livrar da tarefa de ter que pensar muito ou agir muito repetidas vezes (o que pode gerar sobrecarga cognitiva).
Caso eu deixe um mesmo livro sempre no mesmo lugar ou na mesma região, quando precisar dele saberei onde encontrar. Caso minha gaveta esteja organizada por camadas de objetos ao invés de conter um emaranhado aleatório de coisas, perderei menos tempo e provavelmente me estressarei menos.
No jogo Poof! Cleaning Services, além de organizar você deve limpar os cômodos (com o benefício de sua rinite não atacar). Uma lógica um pouco parecida com o game House Flipper. Ora, limpar as coisas e as colocar no lugar não costuma ser algo muito prazeroso na vida real. Por que achamos um jogo sobre isso tão divertido?
Aqui se trata da ludificação. Não vou sequer falar de termos como recompensa e sistema de pontuação ou algo assim. Trata-se do ato de tornar uma ação do mundo real em algo simplificado dentro do jogo.
É extremamente custoso fazer algo do tipo no dia a dia, mas dentro de um game posso resolver isso com apenas alguns cliques ou apertando alguns botões. Nesses casos, não queremos hiper-realismo. Queremos a satisfação de ver algo limpo e organizado sem o custo energético enorme de assim o fazer no mundo real.

Hipótese 4 - NINGUÉM VAI ME SEGURAR!!
Liberdade. Ah sim, o poder de fazer o que eu quiser. Ou, ao menos, com o maior nível de customização possível!
Como dito um pouquinho lá em cima, em Unpacking, há um certo limite em relação aos locais em que cada objeto pode ser posicionado. Em outros games, no entanto, você tem maior liberdade de posicionamento dos itens.
A sensação de que você pode usar sua criatividade com todo o potencial é extremamente estimulante para um perfil de jogadores. Alguns players até usam mods para poder customizar ainda mais suas casas, itens e personagens em games.


Hipótese 5 - Propósito

"Propósito, Livia? Todo jogo tem propósito!". Você está certo, xófen. Mas os propósitos de jogos cozy têm uma vibe singular.
No game Urban Jungle, você deve posicionar as plantinhas da maneira mais eficiente para que elas fiquem "satisfeitas e felizes". Algumas precisam de mais água, outras de mais Sol. Tudo isso para que você gradativamente entenda a história da protagonista e a conexão dela com as prantchinhas.
Em Alba: A Wildlife Adventure, o propósito principal é impedir que a fauna e aflora de uma ilha sejam devastadas para a construção de uma cadeia de hotéis.
Em Abzû, você explora a destruição de uma civilização enquanto se conecta com a vida marinha e restaura cenários destruídos.
Existe um elemento fortemente emocional e usualmente social em jogos desse tipo. É claro que salvar uma princesa ou ser o maior herói de todo o continente também podem ser objetivos conectados à emoção e narrativas envolventes.
Mas o que quero dizer é que em alguns jogos cozy, a mecânica em si tem uma essência de cuidado, de presença e de prestar atenção a detalhes emotivos. Isso dá ao player uma forte sensação de propósito maior. O jogador é um agente de ação de tal cuidado e alteridade.
Existe um certo elemento de mindfulness em arrumar objetos em uma pequena van sem tempo definido. O propósito está na própria ação, na mecânica.
Para Finalizar
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Aqui embaixo vou deixar algumas referências, mas também queria dizer queeeee tenho um curso maneiraço sobre Psicologia & Games em que abordo algumas dessas temáticas! Você também pode colar de graça no Patreon como membro e sugerir temas aqui para as matérias! :D

Do mais tamo junto! Espero muito que tenha gostado porque vem mais conteúdo por aí! E é aquele famoso ditado: EU VOLTAREI!
Bjos, amores.
Referências
Aqui levamos a pesquisa à sério, tá? Aqui você encontra todas as referências utilizadas nesta matéria!
Cai, Z., Mao, P., Wang, D., He, J., Chen, X., & Fan, X. (2022). Effects of scaffolding in digital game-based learning on student’s achievement: A three-level meta-analysis. Educational Psychology Review, 34(2), 537-574.
Monaghan, C. J. (2013). A quantitative quasi-experimental study on the effect pastel colored paper has on student learning (Doctoral dissertation, University of Phoenix).
Scienza, L., de Carvalho, M. P., Machado, A., Moreno, A. M., Biscassi, N., & de Souza, D. D. G. (2019). Simple discrimination in stingless bees (Melipona quadrifasciata): Probing for select‐and reject‐stimulus control. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 112(1), 74-87.
Singh, M., Singari, R. M., & Bholey, M. (2024). The Influence Of Color On Visual Psychology And Cognitive Behavior: A Study In Paediatrics Hospital Environment. Educational Administration: Theory and Practice, 30(5), 13164-77.
Svensson, K., & Bergman, W. (2024). Beyond the Boxes: Analyzing Environmental Storytelling in Unpacking. Available at SSRN 4998331.
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